Sobre coelhos e Alices

Já é quase manhã ..
meu perfume já se foi e de algum modo me encontro
parado,estático na cozinha,escorado no fogão esperando
o café ficar pronto,do qual eu nem me lembro de preparar.
Um gole,uma tragada,um sorriso torto por nada ..
Lapsos contínuos,de coisas que provavelmente eu vá
me arrepender depois,me vêm,súbitos e cruéis.
Letras no bilhete deixado na porta da geladeira parecem
bailar ao som de uma música qualquer que escutei a três horas atrás.
  _Me leve para casa!
  _Está chovendo
 De fato,não me lembro de quem seja.Continua:
  _Meu coelho irá morrer
  _Faça um ensopado oras.
 No meu consciente eu sou muito engraçado,acredite.
  _Não tem graça .
  _Tudo bem,pegue suas coisas,temos uma vida para salvar.
 Sempre gostei de dirigir sem condições psicólogicas.A emoção do inesperado me fascina.
  _Vá devagar,você ainda está bebado,cretino!
 Minha mãe costumava me chamar assim,meu pai também,mas ele prefiria "idiota",pois era o único que   conseguia lembrar quando chegava em casa ás 4:00 da manhã bêbado.
  _Eu estou ótimo,concentre-se no seu sangramento.
 Droga,aquele estofado novo custou tão caro ..meu chefe vai me matar!
  _Vire a esquerda
  _A minha ou a sua ?
  _A sua.
 Não havia nenhuma diferença.Foi o que eu pensava quando,por pouco,não atropelei uma senhora
que arremeçou algo no vidro traseiro enquanto praguejava puro ódio.
  _Você está louco ? Eu conheço aquela senhora e ...
 Não estava ouvindo.Pensava no velório daquela mulher e seu marido chorando junto ao túmulo,enquanto eu assistia tudo ao longe,no carro que usei pra mata-lá.
  _Ok,já entendi,sinto muito,vou mais devagar.
  _Eu espero.Vire a direita,agora a esquerda,vá mais depressa seu inútil !
 ...mulheres
  _Espere,deixe-me ligar meu radar contra senhoras indefesas na pista.
  Ela,enfim,esboçou um projeto de sorriso,mas sua expressão mudou ao olhar pra frente de novo,quando,por pouco,não bati contra uma árvore.
  _Seu idiota,nao olhe pra mim,olhe pra frente !
  Porque eu sempre consigo estragar as coisas ?
  _Porque você sempre consegue estragar as coisas ?
  Isso não soa tão engraçado quando ela diz
  _Já me fiz essa pergunta.
  _Olha,é ali,no predio amarelo.
 Desço depressa.Observo o momento em que ela se enfia dentro
do casaco vermelho,apressada a procurar a chave correta em um molho enorme com outras trinta.
  _Quer que eu a ajude ?
  _Chame o senhor que cuida do portão,ele é meio surdo,você terá que gritar.
 Eu sempre consigo achar graça em situações inadequadas e de fato eu estava morrendo de rir por dentro
enquanto gritava:
  _Ei,senhor,por favor,SENHOR!
  _Oi pois não _ele responde em um salto na cadeira onde estava adormecido_
  _O senhor poderia por favor destrancar o portão para que possamos entrar ?
  O modo com que ele apertava os olhos afim de enteder melhor o que eu dizia e identificar que eu era
 me divertia.
  _Ó,sim claro,entre!
  E abriu a portaria enquanto sorria extramemente simpático,com os olhos ainda apertados.Ela entrou primeiro,me atropelando enquanto eu agredecia o bondoso senhor.
  _Depressa,por aqui! _ela dizia_
  Então reparei em seus cabelos que balançavam enquanto insanamente subia os degraus da escada e
  os lapsos voltaram,mas dessa vez,de uma outra forma;Seu rosto me era familiar,era íncrivel.Uma linda desconhecida.Ela então,me interrompe quando chega a seu apartamento,número 109.
  _Entre ..entre
  _Que vista incrível da rua você tem!
  Aquele realmente não era um momento apropriado para esse comentário,e eu percebi isso quando ela me olhou com uma expressão mista de raiva e desespero como resposta.
  _Obrigada ..por aqui,depressa
  Cruzei então sua sala de estar até um cômodo pequeno perto da área de serviços e a varanda,onde,se encontrava um pequeno corpo desfalecido com longas orelhas,encima de um jornal.
  _Eu sinto muito!
  Seu choro era tão sincero.Ela o apertava contra si mesma como se o estivesse devolvendo a vida.Naquele momento,percebi que aquele pequeno ser,poderia ser tudo o que ela tinha de valor e então a abracei,mas logo me desfiz ao sentir o odor fétido que o animal exalava.Ela devia o amar muito mesmo.
  _Ele era tudo o que eu tinha,toda minha companhia ..
  É,eu havia acertado em cheio.Não comemorei.
  _Eu sinto muito.
  Oh não,eu ja havia dito aquilo! Preciso ampliar meu vocabulário para essas situações.
  _Obrigado -ela disse ainda chorando um pouco -
   O sol já se levantava,então ela se desvencilhou do pequeno coelho sem vida e o envolveu em uma toalha branca,se levantou,secou um pouco das lágrimas que haviam escorrido em seu rosto e me abraçou ..forte,profundo e magnificamente me fez sentir como a muito tempo eu não sentia,depois,com um sorriso único e com um tom de voz suave e profundamente lindo disse :
   _Eu me chamo Alice ...


                                                                                Marcelo.

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